Sobre pessimismo, experiências, esculturas e viver.

Tenho sorte. Creio eu que, devido a um ‘não-sei-o-que’ (deixo aos pedantes o uso do ‘balsé’ ‘je nes se quois)  espiritual, sou agraciado por uma quantidade considerável de ótimas oportunidades, possibilidades de vivências.  Não considero, porém, que recebo mais oportunidades do que o próximo, que tenho mais sorte do que os outros, que o universo – em toda sua magnificência – dedica-se a olhar-me mais do que o faz com aqueles que me circundam. Não, isso seria pedantismo, prepotência, preconceito. Simplesmente penso que, a mim, sobra o que aos pessimistas falta: disposição.

Companheiros legais, os pessimistas, um pouco enfadonhos, entediantes, às vezes, é verdade, mas, no geral, são ótimas companhias. Gosto de seu realismo, de seus pés firmes no chão, do contraponto racional que apresentam a meu idealismo exacerbado. Em minha vida geram dissonância, movimento, questionamento. São sempre ótimos desafios intelectuais aos meus pensamentos, ideologias.  Entretanto, por melhor parceria que apresentem, neles me incomoda a falta de disposição. Têm por costume, default, partir dos pontos negativos (como, claramente, o nome sugere) para a não realização de algo. Sempre pesam os contras, refletem sobre o negativo de antemão.

‘Mas, qual é o grande problema com tal maneira de viver?’, você poderia inquirir, caro leitor, e, se fosse um pouco mais do que desagradável (ou pessimista), poderia até argumentar que, tomando essa ótica para nós, evitamos decepções, entristecimentos, machucados. É precisamente nesse ponto que fixa-se minha oposição feroz aos pessimistas.

Explico:

Acredito, piamente inclusive, que nossas experiências – aquilo que efetivamente vivemos – são integrantes na definição do verbete de ‘quem somos’. O que fazemos, vivemos, experimentamos, ou não, é aquilo que nos marca, que grava no espírito (e no corpo) humano nossas batalhas. Ninguém é escultor mais competente da essência humana do que a grande (e sapientíssima) Experiência. Com seu divino cinzel encarrega-se, lotada de ‘amabilidades’ e atenção, de esmerar-se na complicadíssima tarefa de escultura humana.  Grava, no espírito de todos, tudo aquilo que, ao longo de nossas existências, torna-se relevante o suficiente para integrar o coletivo de quem somos. Essa grande escultora tem a mão acostumada, devido a milênios e milênios de experiência, pesa exatamente, em seu punho, no bater do cinzel, a proporção do quanto nossas vivências nos marcam, imprimindo o reflexo emocional de nossas experiências na essência humana. Assim como nossos viveres, algumas marcar são mais profundas, outras mais rasas, entretanto, todas – e cada uma dessas – são levadas em consideração ao observarmos a grande escultura de viveres que é “você”.

Ao vermos, interagirmos, com alguém, propomo-nos a observar suas marcas, aquelas tão maestralmente gravadas pela Experiência em todos. É, diga-se de passagem, na comparação dessas impressões que, inconscientemente, pesamos aqueles que queremos como companheiros, procuramos, mesmo que instintivamente, aqueles que têm marcas semelhantes às nossas. Olhamos, com esmero, para os gravares do grande cinzel da Experiência no corpo alheio e procuramos aquelas marcas que, de qualquer maneira, ecoam com as nossas, que descrevem nossa ‘geografia pessoal’.

Com isso, podemos de maneira incrivelmente simples, definir a importância das experiências em nosso viver. É experimentando, arriscando, marcando-se, que vivemos. Como é possível que, por causa de paúra de marcarmo-nos, desperdicemos esse grande presente universal que é a vida? Ao fugirmo-nos desse sapientíssimo cinzel e escultora, estamos, por conseguinte, furtando-nos do viver. Habitamos esse espaço com um simples intuito: mudar, evoluir. É disso que consiste nosso viver.

É claro, não é tarefa simples deixar-se a viver. É de demasiada complexidade e exige quantidades exacerbadas de coragem entregar-se ao cinzel da Grande Escultora. Alguns temem a dor, outros as marcas. Aqui encaixam-se os supracitados pessimistas: com receio de entregarem se às experiências do viver, fogem do esculpir tal qual o diabo foge da cruz. Não gostam de ideia de alterar-se, reconfigurar-se, mudar de forma, perder pedaços. Temem por desconhecer-se, caso mudem demais. Esquecem, porém, d’aquilo que ressaltamos anteriormente como nosso principal objetivo nesse plano existencial, evoluir, mudar, reconfigurar.

Baseado nessa ideologia, defendo meu viver. Entrego me, de cabeça, ao viver. Abraço as experiências que a vida me propõe, deixei de fugir do cinzel, de me esconder da reconfiguração. Compreendendo a necessidade do perder pedaços, do trocar de forma, foi dessa maneira que tornei-me – por mais paradoxal que pareça – mais completo, mais feliz.

Ser idealista, sonhador, significa entregar-se, deveras apaixonadamente a seus viveres. Compõe-se como mergulhar de cabeça nos rios que encontramos, jogarmo-nos – mesmo sem uma certeza plena de onde chegaremos – nos grandes espaços vazios do não desbravado. Significa cair, se quebrar, mudar, muito. Mas, quando as quebras do viver ocorrem, lá está ela, a maravilhosa Experiência, aguardando pacientemente o momento de aproximar-se com suas ferramentas e transmutar aquele pequeno (ou grande) pedaço quebrado em mais uma parte, viva e linda, da grande obra de arte que é a escultura do humano.

Sobre folhas em branco, vazios e criar.

Às vezes, como agora, gosto de abrir um documento em branco e observar a “vazieza” do mesmo. A folha em branco é impassível, impositora e – acima de tudo – desafiadora. O branco é uma constatação, uma declaração. Quando se mostra, clama por criação. A não criação, intempestivamente se apresentando na forma da ausência, instiga o artista a ocupa-la, provoca-o a empreitar na desafiadora jornada do fazer. O artista – qualquer que seja – quer ocupar o branco, quer colori-lo, criar sobre ele. Entretanto, não o faz simplesmente por fazer (isso seria um tremendo exercício de futilidade, não é?). Criamos, pois temos um prazer (um tanto quanto sádico, devo ressaltar) de parar à beira dos vazios (não da folha, mas sim de nossas almas) e contemplá-los, compreendê-los, ocupa-los.

O texto (neste caso) transmuta-se em um reflexo, límpido e cristalino, das tempestades internas do escritor. Ele grita, tal qual a folha, as aflições de seu construtor, padece dos mesmos males, regozija-se das mesmas alegrias, espelha – em si – perfeitamente aquele que o faz. Ao propor-se a desbravar as intrépidas fronteiras da folha em branco, o escrito predispõe-se a desnudar os ecos d’alma para todos aqueles que queiram ouvi-los. Criar é, em essência, desbravar-se, fitar, longa e pausadamente, as “vaziezas” do espírito, as tormentas e alegrias da mente. Criar é, por conseguinte, não somente existir, mas sim, melhorar-se.

Creio que essa mesma sensação acomete todos aqueles que, de alguma maneira, criam para viver. O artista impõe-se contra seus vazios, posiciona-se, ocupa-os. Não é facultativo, ao criador, produzir ou não, temos de fazê-lo, temos de ocupar, temos de colorir. É ocupando o vazio que tentamos fazer arte. É tentando fazer arte que melhoramo-nos. Tem coragem, aquele que cria, diferente dos demais, não torna a outra face para seus demônios, encara-os de frente, observa, contempla, reflete e – talvez o ponto-capital – entrega-se de corpo, alma e mente ao processo.

Criar é viajar. Não no sentindo pobre da palavra. É desbravar os abandonados cantos da mente, da alma, caminhar pelas querelas do coração, pelas alegrias da infância, pelos desafios do viver. Propondo-nos a colorir o vazio, empreendemos em uma jornada maior, inclusive, do que nós. Ingressamos, através do fazer, na grande jornada evolutiva, aquela que sempre se fez (e se fará) presente no coletivo de experiências humanas.

O mais fascinante no processo criativo (para este) é a relação paradoxal constituída entre o isolar-se do “fazer” e o integrar-se do “mostrar”. Quando apresenta sua peça, o artista mostra todo o isolamento de seu espírito para aqueles que vão degusta-lo, observá-lo e – se a peça em questão for de qualidade – vivenciá-lo, nem que momentaneamente. Produzindo conseguimos ecoar em outros espíritos, outros tempos. A arte (em sua maioria) não se desfaz, permanece, mesmo que esquecida. Considero deveras louca a possibilidade de meus escritos ecoarem em vazios de pessoas pertencentes a outras épocas. Dialogarem com querelas que, apesar de diferentes em tempo, podem ser semelhantes em essência.

Por isso crio, o faço para melhorar-me, para alcançar as partes de mim perdidas nas brumas de minh’alma, para ocupar os penhascos escuros de meu espírito, desafiar os limites de meu ‘eu-pensante’, manter-me em movimento. Escrevo para dialogar (de alma para alma) com aqueles que dividem deste processo, inclusive as partes esquecidas de mim.

 

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Sobre música, literatura e alma.

Gosto de música.

– Não, não, gosto não é a palavra certa –

Vivo música (pronto, bem melhor). Tenho a grande sorte (?) de rodear-me de pessoas que, também (aparentemente), são apreciadores da mesma. Gosto de debruçar-me sobre as melodias, ouvir os movimentos, sentir os caminhos que a música nos propõe. Vivo a música, a experimento, degusto.  Admiro a habilidade (a qual – claramente – não possuo) dos músicos de transmutar. Pegam pensamentos, emoções, viagens e, magicamente (contando com a adição de doses semi-letais de trabalho) transformam-os em harmonia, som, vibração. Música de qualidade dialoga com a alma, vai direto ao espírito e encarrega-se de chacoalhar qualquer coisa “malparada” que encontre lá dentro. Música transmite energia, balanço, força. É terapia, é reflexão.

Gosto de música até (um pouco) demais, acho – Até por que, não gosto de admitir os problemas que tenho –. O curioso é que consigo pontuar – com uma exatidão que, se conseguisse aplicar às outras competências de minha vida, viveria bem menos esquecido – o exato responsável pela ignição de tal paixão em minha alma. Devo, toda minha fascinação musical a um tal camarada britânico chamado Rick Wakeman, mais especificamente a um único álbum: “Journey to the Centre of the Earth” de 1974.

A união maestral de dois grandes senhores de suas épocas, Rick Wakeman – senhor absoluto do órgão e a da composição moderna – e Julio Verne – Mestre literato da ficção científica do século XX. “Jouney to the Centre of the Earth” é um sopro de ar fresco (antigo, mas, ainda sim fresquíssimo) no meio de tantas realizações musicais sem criatividade, sem vida. De movimentos complexíssimos, amplamente trabalhados por uma competentíssima orquestra, o álbum propõe-se a explorar a aventura criada por Júlio Verne (mais do que) um século antes. Com uma alegria pueril, uma leveza admirável e, ao mesmo tempo, uma complexidade tenebrosa, Rick Wakeman acertaria o que, para este, é o feito de sua vida.

Lembro-me do primeiro contato que tive com tal álbum. Rick Wakeman e Julio Verne vieram até os sertões quentes rio-pretenses e estenderam-me a mão para uma jornada (figurativamente, né? Seus malucos.) até o centro da terra – e, também – de minha alma. Apresentou-se diante de mim, a união perfeita da minha maior paixão (ficção) com um ótimo hobby(música).

 

Era, à época (ainda mais) jovem, meu atual gosto pela MPB, Rock Progressivo e Blues ainda passava longe do meu “eu” do passado. Um jovem metaleiro (sim, todos temos o direito de errar – perdoem-me os metaleiros) vivendo em uma pequena cidade do sertão paulista, morrendo, algumas vezes de tédio e outras de calor, devido a minha péssima escolha de vestuário (e gosto) para a região em que vivia. Em uma fatídica tarde de verão – quente e miserável como a maioria delas aqui por essas bandas – um velho e grande amigo veio-me com um álbum em mãos, dizendo que tínhamos de escutá-lo. Achei um pouco curioso, visto que não era nada de nossa – por assim dizer – alçada musical. Estranhei a capa, muito colorida para meu gosto, o nome – em minha doce ignorância – rotulei como tenebroso, a proposta – então – maluca. Após alguns longos períodos de convencimento – pois, como podem inquirir a qualquer ser próximo a este, contenho em mim toda reticência (e exagero) do universo – foi decidido (não exatamente por mim) que deveríamos ouvir tal disco.

Boom (sim, como uma bomba mesmo)! Minha cabeça explodiu. No respiro de um instante, um mundo de possibilidades de se abriu diante de mim. A união – polígama e cheia de amor – entre Música Clássica, Rock and Roll e Literatura abalou profundamente meu ser. Novos horizontes musicais abriram-se ao meu redor, um mundo mais profundo, mais emocionante, experimental, louco. Disso veio Yes, de Yes vieram Floyd, Zeppelin, Hendrix, Joplin, Genesis, Crimson – A porta não fora aberta, mas sim, arrombada, destroçada, sem esperanças de arrumar-se.Após alguns anos, graças a uma rapaziada (ainda mais) maluca do que eu (Centro da Terra Power Trio) apresentaram-se Mutantes, Gil, Gal, Caetano, Casa das Máquinas, A Bolha, Joelho de Porco, Novos Baianos, Perfume Azul do Sol…

Muito mais do que, simplesmente, um gosto apurado, tal álbum mostrou-me um novo viver, pensar. A música tornou-se parte integrante do meu ser, de minhas reflexões, de minhas querelas, minhas loucuras. A mensagem de amor e paz começava a permear minha mente, um caminho para uma existência mais limpa, um viver mais pleno. Pode soar como loucura – e se, efetivamente o for, quem se importa? – para aqueles que não compreendem (pobres almas), mas, minha paixão por música moldou (praticamente sozinha) meu “eu pensante”. Através da música bem feita, o barulho foi introduzido (ou remexido) em minha essência, a semente do movimento, da indignação, da luta, do questionamento, do pensamento foi plantada em solo fértil.

Através destas sementes nasceram o pseudo-escritor, o fotógrafo, o filmmaker, o educador. A turbulência incrustada em minha alma é dependente deste exclusivo momento. Tivesse eu me recusado a experimentá-lo, certamente seria outro hoje. Fica, portanto, o apelo: apreciem música, provem novas situações, deixem-se inundar por essa linda vibração que é o “desconhecido”, o “novo”. Deixem entrar um pouco d’água nos seus quintais.

 

Sobre as Vidas, o viver e a infindável administração do universo.

Gosto da vida. Decididamente não sou um daqueles sujeitos aborrecidos, sofridos e entediados. Recosto-me sobre suas nuances, me contenho em suas pequenezas e me expando sobre suas “gigantezas”. Gosto do jeito indecente com o qual ela nos apresenta grandes discussões existenciais, como quem não está fazendo nada além de tomar seu cafezinho matinal. Amo seu jeito desleixado – os mais pedantes diriam blasé – de, ao mesmo tempo, ignorar e divinizar o individualismo humano.

Ignora, como força motriz de todas as mudanças em um panorama universal que é. Atropela, esmaga, desconsidera a individualidade. No grande esquema das coisas, ela não se dignifica a observar o indivíduo – discutivelmente a espécie. As questões com as quais a grande vida se ocupa são muito maiores do que as querelas existenciais de qualquer individuo. A grande vida pensa em magnânima escala, com perfeição divina. Roda a grande engrenagem do universo, da existência. Não se detêm em qualquer lugar, não se propõe a observar o micro, trabalha em macro. É senhora muito atarefada – alguns até a reputam como caótica – ela é movimento, mudança, caos e harmonia.

Creio que seja dessa Vida que deriva grande parte do ceticismo humano, da descrença. É observando a magnânima Vida em ação que perdemos a fé no efeito humano sobre todo o processo.  Qualquer ação que tomemos – sobre a ótica intimidante de uma vida muito grande, complexa e atarefada – parece perder-se, como lágrimas em um grande oceano. Criam-se, aqui, todos aqueles questionamentos – aborrecidos e desprovidos de qualquer senso de humor – dos grandes realistas.

Não gosto dos realistas. Acho que a eles falta a infantilidade, a esperança, o movimento. Veja bem, não critico – muito menos tenho a aptidão ou o interesse em fazê-lo – a integridade intelectual desses, só os acho aborrecidos, irascíveis e – de tempos em tempos, até mesmo – entediantes. Falta-lhes a sensibilidade. Creio, piamente, que carece, a qualquer ceticismo baseado no pensamento supracitado, profundidade na observação. Devemos, em tudo que fazemos, sempre nos propor a observar a figura como um todo. Não devemos ver filmes pela metade, ouvir álbuns em partes, observar somente parte de uma pintura. Já imaginaram quanto aperreante seria se fossemos ao teatro para assistirmos a somente ao primeiro ato de uma peça? É isso que fazemos ao observarmos a vida como única.

A Vida – sapientíssima e abarrotada de trabalhos, como somente a concepção responsável por reger a existência seria – não é burra. É senhora da organização e da produtividade e, como qualquer líder que se preze, sabe delegar. Aponta as funções menores – em tamanho, não importância – a outras Vidas. Assim o faz para garantir o eterno controle de qualidade, para assegurar de que nada lhe saíra ao controle, para certificar-se de que, mesmo ela em pessoa não podendo se ocupar dos pormenores do universo – afinal de contas os multiplanos e as pan-existências não se administram sozinhas – exista um sósia seu, menos atarefado com tais grandes questões, para responsabilizar-se da manutenção da harmonia em escalas menores. É aqui que ela diviniza.

Diviniza demonstrando atenção – até mesmo – ao humano. A Grande Vida incumbe suas reproduções menores de atentarem todos os pequenos detalhes da existência, oferecendo seu eco em todos os pontos. É nesse ponto que se apoia o idealismo, pois, em contraste ao ceticismo aborrecido, observando as coisas sob essa ótica – da vida e de suas “vidinhas” – força-se presente o idealismo. É possível, assim, acreditarmos que nossas ações sim podem – afinal, por que não? – afetar o grande esquema das coisas, pois, se a grande Vida não terá tempo para administrar nossas pífias – em tamanho, não relevância – mudanças, ela delega a suas menores companheiras a responsabilidade para, em escalas progressivamente menores, observarem o universo que as envolve. Esforçando-nos para influenciarmos essa pequena vida que nos observa é a maneira que temos para mudar nossa realidade.

Colocando a metáfora de lado, momentaneamente, é assim que creio podemos mudar nossa realidade, mudando pequenas existências conseguimos mudar o plano maior do mundo.

Entretanto, as coisas – como sempre – não são assim tão simples. A vida – pelo menos para este que vos escreve – é uma constante batalha entre o realismo e o idealismo. Entre o “Vamos mudar” e o “É impossível mudar”. Entre o movimento e o sedentarismo. É impossível vivermos plenamente em um. Habitando sempre o espaço do idealismo, perdemos o concreto, nos prendemos ao teórico, tendemos sempre ao otimismo. Ficando sempre à sombra do realismo vivemos somente no concreto, nos tornamos céticos, esquecemos do abstrato, tendemos ao pessimismo. Acredito plenamente que a vida deve ser vivida com equilíbrio, nem muito a sul, nem muito a norte.

É assim que, todos os dias, deveríamos nos esforçar para realizar o viver – gosto do termo Realismo Otimista de Mario Sérgio Cortella: apoiando-nos no ideal, sem esquecer do real. Eduardo Galeano – grande jornalista uruguaio – reflete maravilhosamente sobre o idealismo e a ideia de utopia. Peço, portanto, permissão para ilustrar esse humilde pensamento com palavras geniais, encerrando assim nossa discussão:

“A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Pra que serve a utopia? Serve para isso:
para que eu não deixe de caminhar.”

Sobre Recomeços, vida e música.

São engraçados, os Recomeços, aliás, não imputemos culpa em conta alheia – os pobres Recomeços não detêm nenhuma responsabilidade sobre a insipiência humana. Estão eles sempre ali, apostos para oferecer-nos sua erudição, independente de quantas vezes encontremo-los. Verdadeiramente, os engraçados são os humanos.

Penso que, das muitas convicções pré-fabricadas que carregamos no grande porão do inconsciente coletivo da humanidade, o conceito que temos a respeito dos Recomeços seja, talvez, um dos mais equivocados.

De todos os momentos em que levamo-nos a refletir sobre a vida, na excruciante maioria alugamos a imagem mental dessa como uma trilha retilínea, em que só temos a hipótese de progredir se seguirmos continua e ininterruptamente rumo ao norte, onde encontra-se a plenitude de todas nossas alegrias. Deus nos livre se – por qualquer desventura do destino – tomarmos a liberdade de admirar o voo de uma borboleta, o aroma de uma rosa ou a simples canalhice desafiadora de uma nuvem em um céu preguiçoso de verão e – devido a tal zombaria ao contrato social – pisarmos fora de tal divino caminho. Uma das maiores desgraças que podem acometer a vida de qualquer sujeito é “perder-se” de tal vereda, tendo que – de maneira abundantemente vexatória – “retroceder” até encontrar novamente a tal “rota para o Eldorado”.

O recomeço torna-se, assim, o grande guia da vexação, nos aguardando pacientemente à beira da mítica trilha da alegria e do progresso somente para bradar – a plenos pulmões e aos sete ventos, com uma perícia invejável que somente o grande arauto da desonra poderia deter – nossa incapacidade, insuficiência e ignorância para todos aqueles que se encontrem ao nosso redor. “Como conseguiu se perder de tão aprumado rumo?” “Vai andar tudo que você já andou, veja se dessa vez não se desorienta, hein, meu chapa?”

Pode ser um grande exercício de futilidade pontuarmos todos os problemas decorrentes de visão tão rasa da vida. Entretanto, pelo bem da reputação do pobre recomeço – que nada fez para macular a honra de nenhum homem, quanto mais de toda a humanidade – sinto-me na responsabilidade de, ao menos, tentar reparar parte desta embaralhada ótica:

Já principiamos a reflexão com a imagem errada, ao concebermos a vida como um caminho único, retilíneo e inequívoco em rota direta para a felicidade. Significamos, assim, nossas expectativas sobre o viver de maneira equivocada. Observamos a vida como uma perseguição incessante da felicidade, da realização e da alegria – quando, na realidade, as desafortunadas encontram-se ao relento, abandonadas no meio do caminho –. Deixamos de viver e passamos a simplesmente existir na perseguição infindável de tais ideais.

Considero – deveras – impressionante a capacidade humana para constituir uma linha de produção de pessoas miseráveis, frustradas e iludidas. Explico: miseráveis pois existimos sempre infelizes com a ideia da alegria que poderá vir a existir quando alcançarmos o cume da íngreme colina “daquela promoção”, “da graduação”, “do casamento”; frustrados porque, ao atingirmos tal topo, vemos que a estrada não encontra-se – nem mesmo – próxima a seu final, o Éden não tem, ao menos, um mínimo de decência para mostrar-se à nossa vista. Ponderamos então o caminho à próxima grande colina, respiramos fundo, afogamos a frustração e a miséria e seguimos viagem, amaldiçoando – de tempos em tempos – o construtor da estrada. Seguimos nesse processo repetidas vezes sem percebermos que, na realidade, estamos nos iludindo.

É nessa equivocada concepção da vida – como uma estrada ascendente norteada pelo grande Eldorado da felicidade – que reside a grande injustiça feita ao desafortunado Recomeço. Lá está ele, a beira dessa estrada inexistente, aguardando pacientemente para apontar-nos – com perícia embasbacante – o fracasso cometido. Afinal, recomeçar é voltar o passo a um trecho já desbravado dessa estrada, para que, ao percorrê-lo novamente, voltemos ao local no qual nos perdemos e não cometamos o mesmo equívoco.

Portanto, para acertarmos – em definitivo – a conta com o injustiçado Recomeço, solicito uma mudança de metáfora. Esqueça a estrada, jogue o mapa fora, pare de contar colinas. Pensemos no viver como uma composição clássica:

Se dedicarmo-nos, ainda que rapidamente, a apreciar uma composição erudita – o que, diga-se de passagem, é um conselho sadio a todos – perceberemos que, por mais de uma vez, a música retorna ao seu movimento inicial, revivendo, ainda que de maneira um tanto reconfigurada, a melodia que nos foi apresentada. É neste ponto que devemos focar nosso conceito de vida. Ao ouvimos uma música – seja ela qual for – não desperdiçamos tempo ponderando sobre “qual é o caminho que a composição tomará”, “o que acontecerá após o final deste verso”, “qual será a próxima nota”. Entregamo-nos – ou pelo menos deveríamos – ao processo, vivemos as sensações a nós apresentadas por aquela composição. Dessa maneira devemos – ou deveríamos – viver nossas vidas. A vida é um processo de emoções e não um caminho para emoções.

O viver consiste em experimentar e sentir tudo que nos é apresentado. Conduzindo, dessa maneira, o processo de viver, seremos obrigados a trazer justiça ao paupérrimo Recomeço. Ao retornarmos, em uma peça clássica, a um movimento já antes nos apresentado, não o vemos  ser representado exatamente da mesma maneira que nos foi em um primeiro momento. Em outras palavras, a música usa os conceitos e as ideias desenvolvidas em outros períodos para que, ao conduzir-nos de volta ao movimento inicial, ela possa construir sobre esse, expandindo-o, tornando-o mais complexo, belo, bem acabado, assim – para mim – são os Recomeços em nossa vida.

Quando deparamo-nos com uma situação na qual necessitamos recomeçar não somos a mesma pessoa que fomos quando a vivenciamos em uma primeira oportunidade. Crescemos, aprendemos, mudamos com as experiências das quais usufruímos. Aqui temos, portanto, a oportunidade de aliarmo-nos ao grande Recomeço, que nos aguarda pacientemente com sua magnificência – digna de um sábio que já experimentou quase tudo – e seu amor.

Não devemos nos opor ao Recomeço, temos de associar-nos a ele. Rogo que tomem todas as oportunidades de recomeço não como vergonha, falha, decepção, mas sim como uma grande oportunidade fornecida pelo magnânimo compositor da vida de construirmos ainda mais sobre aquela belíssima peça que devemos, ao longo de todo nosso viver, escrever.