Tenho sorte. Creio eu que, devido a um ‘não-sei-o-que’ (deixo aos pedantes o uso do ‘balsé’ ‘je nes se quois) espiritual, sou agraciado por uma quantidade considerável de ótimas oportunidades, possibilidades de vivências. Não considero, porém, que recebo mais oportunidades do que o próximo, que tenho mais sorte do que os outros, que o universo – em toda sua magnificência – dedica-se a olhar-me mais do que o faz com aqueles que me circundam. Não, isso seria pedantismo, prepotência, preconceito. Simplesmente penso que, a mim, sobra o que aos pessimistas falta: disposição.
Companheiros legais, os pessimistas, um pouco enfadonhos, entediantes, às vezes, é verdade, mas, no geral, são ótimas companhias. Gosto de seu realismo, de seus pés firmes no chão, do contraponto racional que apresentam a meu idealismo exacerbado. Em minha vida geram dissonância, movimento, questionamento. São sempre ótimos desafios intelectuais aos meus pensamentos, ideologias. Entretanto, por melhor parceria que apresentem, neles me incomoda a falta de disposição. Têm por costume, default, partir dos pontos negativos (como, claramente, o nome sugere) para a não realização de algo. Sempre pesam os contras, refletem sobre o negativo de antemão.
‘Mas, qual é o grande problema com tal maneira de viver?’, você poderia inquirir, caro leitor, e, se fosse um pouco mais do que desagradável (ou pessimista), poderia até argumentar que, tomando essa ótica para nós, evitamos decepções, entristecimentos, machucados. É precisamente nesse ponto que fixa-se minha oposição feroz aos pessimistas.
Explico:
Acredito, piamente inclusive, que nossas experiências – aquilo que efetivamente vivemos – são integrantes na definição do verbete de ‘quem somos’. O que fazemos, vivemos, experimentamos, ou não, é aquilo que nos marca, que grava no espírito (e no corpo) humano nossas batalhas. Ninguém é escultor mais competente da essência humana do que a grande (e sapientíssima) Experiência. Com seu divino cinzel encarrega-se, lotada de ‘amabilidades’ e atenção, de esmerar-se na complicadíssima tarefa de escultura humana. Grava, no espírito de todos, tudo aquilo que, ao longo de nossas existências, torna-se relevante o suficiente para integrar o coletivo de quem somos. Essa grande escultora tem a mão acostumada, devido a milênios e milênios de experiência, pesa exatamente, em seu punho, no bater do cinzel, a proporção do quanto nossas vivências nos marcam, imprimindo o reflexo emocional de nossas experiências na essência humana. Assim como nossos viveres, algumas marcar são mais profundas, outras mais rasas, entretanto, todas – e cada uma dessas – são levadas em consideração ao observarmos a grande escultura de viveres que é “você”.
Ao vermos, interagirmos, com alguém, propomo-nos a observar suas marcas, aquelas tão maestralmente gravadas pela Experiência em todos. É, diga-se de passagem, na comparação dessas impressões que, inconscientemente, pesamos aqueles que queremos como companheiros, procuramos, mesmo que instintivamente, aqueles que têm marcas semelhantes às nossas. Olhamos, com esmero, para os gravares do grande cinzel da Experiência no corpo alheio e procuramos aquelas marcas que, de qualquer maneira, ecoam com as nossas, que descrevem nossa ‘geografia pessoal’.
Com isso, podemos de maneira incrivelmente simples, definir a importância das experiências em nosso viver. É experimentando, arriscando, marcando-se, que vivemos. Como é possível que, por causa de paúra de marcarmo-nos, desperdicemos esse grande presente universal que é a vida? Ao fugirmo-nos desse sapientíssimo cinzel e escultora, estamos, por conseguinte, furtando-nos do viver. Habitamos esse espaço com um simples intuito: mudar, evoluir. É disso que consiste nosso viver.
É claro, não é tarefa simples deixar-se a viver. É de demasiada complexidade e exige quantidades exacerbadas de coragem entregar-se ao cinzel da Grande Escultora. Alguns temem a dor, outros as marcas. Aqui encaixam-se os supracitados pessimistas: com receio de entregarem se às experiências do viver, fogem do esculpir tal qual o diabo foge da cruz. Não gostam de ideia de alterar-se, reconfigurar-se, mudar de forma, perder pedaços. Temem por desconhecer-se, caso mudem demais. Esquecem, porém, d’aquilo que ressaltamos anteriormente como nosso principal objetivo nesse plano existencial, evoluir, mudar, reconfigurar.
Baseado nessa ideologia, defendo meu viver. Entrego me, de cabeça, ao viver. Abraço as experiências que a vida me propõe, deixei de fugir do cinzel, de me esconder da reconfiguração. Compreendendo a necessidade do perder pedaços, do trocar de forma, foi dessa maneira que tornei-me – por mais paradoxal que pareça – mais completo, mais feliz.
Ser idealista, sonhador, significa entregar-se, deveras apaixonadamente a seus viveres. Compõe-se como mergulhar de cabeça nos rios que encontramos, jogarmo-nos – mesmo sem uma certeza plena de onde chegaremos – nos grandes espaços vazios do não desbravado. Significa cair, se quebrar, mudar, muito. Mas, quando as quebras do viver ocorrem, lá está ela, a maravilhosa Experiência, aguardando pacientemente o momento de aproximar-se com suas ferramentas e transmutar aquele pequeno (ou grande) pedaço quebrado em mais uma parte, viva e linda, da grande obra de arte que é a escultura do humano.